Collecção dos Negocios de Roma no Reinado de El-Rey Dom Jose I. Ministerio do Marquez de Pombal e Pontificados de Benedicto XIV e Clemente XIII. 1755-1760 Parte I (Lisboa 1874), 41-44:
lnstrucção que Sua Magestade Fidelissima mandou expedir, em 8 de outubro de l737, a Francisco de
Almada de Mendonça, seu Ministro na Curia de Roma, sobre as desordens, que os Religiosos Jesuítas
tinham feito neste reino e no Brasil; para as representar ao Santissímo Padre Benedicto XIV, com a
Relação Abbreviada dos insultos, que os mesmos lleligiosos haviam feito no norte e no sul da America
Portugueza.
1. Ha muito tempo que V. S.a se acha no claro conhecimento das sediciosas intrigas que os Padres Jesuítas da Companhia de Portugal teem machinado nesta, nessa e em todas as Côrtes da Europa, em prejuizo do serviço de ElRey nosso senhor, e do socego publico deste reino e suas conquistas, inventando, escrevendo e suggerindo maliciosamente infelicidades e desordens que nunca existiram, para assim imprimirem ao longe na credulidade do publico tudo o que podia dar huma sinistra idéa do religiosissimo, regularissímo e felicissimo governo de Sua Magestade e das inexplicaveis vantagens que elle tem accumulado, com gloria immortal do mesmo senhor, aos vassallos de Portugal e de todos seus dominios, que assim o estão continuamente apregoando, com infinitas bençãos e innumeraveis orações pela conservação da vida e da prosperidade do seu augusto bemfeitor.
2. Não foram porém até agora participadas a V. S.a as verdadeiras causas daquelles abomínaveís effeitos, porque a incomparavel clemencia de Sua Magestade e a piissima devoção que o mesmo senhor professou sempre aos gloriosos Santo Ígnacio de Loyola, S. Francisco Xavier e S. Francisco de Borja, suspenderam não só a sua indefectivel justiça, mas até a natural defeza dos seus expilados e afflictos vassallos, emquanto pôde caber na sua real esperança que conseguiria a emenda de tantas e tão extraordinarias desordens, sem prostituir os filhos de huma tão santa e veneravel mãe como a Religião da Companhia.
3. Os detestaveis excessos que V. S.a verá na pura e íiel narração, que ajuntarei a esta carta debaixo n.° 1 fisto he, agora a Relaçāo Abbrevíada, n.° IV) e a incorrigivel obstinação que elles manifestam, havendo porém já passado alem do desengano da emenda, não poderam ultimamente dispensar a auetoridade regia e a indefectivel protecção que Sua Magestade deve aos povos que Deos lhe confiou, de applicarem os ultimes remedios a males tão extremos, como os que constam da mesma Relaçāo.
4. Havendose nella omittido os muitos e mui aggravantes escandalos, que se não podiam referir sem maior indecencia e pejo de quem os escrevesse e ouvisse; e deduzindo-se sómente aquelles que a sua publicidade tem feito mais notorios, e que se não podem tergiversar e reduzir a duvida, senão negando o que se está vendo como physicamente certo, pela evidencia de factos permanentes, que são incontestaveis de sua natureza; ainda assim he grande o desprazer que Sua Magestade tem do muito que se verá, sobre a absoluta corrupção destas provincias de Portugal e do Brazil.
5. Nellas achará V. S.a concluido, com physiea certeza, que cessou ha muitos annos na pratica de seus Religiosos a obedicncia ás bulias e ordens pontifícias, a observancia das leys mais ímpreteriveis para a conservação paz publica destes reinos e seus dominios, a fidelidade aos seus Augustos Monarchas e a pia instrucção de seus vassallos; havendo-se sacrificado todas estas obrigações chrístãs, religiosas, naturaes e políticas a huma cega, insolita e interminavel ambição de governos politicos e temporaes, de aequisições e conquistas de fazendas alheias, e até de usurpações de Estados, não se reparando naquellas abominaveis transgressões em todas as vezes que se vio que ellas podiam ser meios para estes fins tão reprehensiveis, como alheios do santo instituto, de que os mesmos Religíosos mostram hum esquecimento tão absoluto como escandaloso.
6. Chegou emfim a tão lastimosos e deplorareis termos a extrema corrupção e a infelicidade dos filhos desta santa Religião no reino de Portugal, muito mais nos seus dominios ultramarinos, que nelles são poucos os Jesuítas que não pareçam antes ou mercadores, ou soldados, ou regules, mais que Relígiosos.
7. E como toda a demora que houvesse em obviar a tão grandes desordens teria a consequencia de as fazer irremediaveis, foi Sua Magestade necessitado a occorrer a este perigo dos seus vassallos e domínios, e zi total ruína das mesmas províncias religiosas, com o que podia caber no governo temporal do mesmo Senhor, antes que de todo se perdessem por falta de remedio.
8. E sendo os mais tortes apoios da ousadia que os mesmos Padres teem manifestado, assim na Europa como na Amcriea, os confcssíonaríos desta Côrte, e a entrada dos ditos Relígiosos neste Paço, mandou El-Rey nosso senhor por huma parte recolher as respectivas casas das suas filiações todos os confessores das Pessoas Reaes que eram Jesuitas, nomeando Sua Magestade para seu confessor o Provincial actual dos Capuchos de Santa Maria da Arrabída, Fr. Antonio de Santa Anna, conservando-se no confessionario da Rainha nossa senhora o ex-Vigario Geral dos Relígiosos Agostinhos Desealços, Fr. Antonio da Annunciação, que já tinha exercício uelle, e promovendo para o da Princeza nossa senhora e das Senhoras Infantas ao Provincial tambem actual da Religíão dos Carmelitas Calçados, Fr. Joseph Pereira de Santa Anna. O Serenissimo Senhor Infante D. Pedro escolheo o mesmo confessor de ElRey nosso Senhor; o Serenissimo Senhor Infante D. Antonio a Fr. Antonio de Santa Maria dos Anjos Melgaço, ex-Provincial dos Religiosos Franciscanos da provincia de Portugal; o Serenissimo Senhor Infante D. Manuel a Fra Valerio do Sacramento, Religioso Capucho da provincia de Santo Antonio.
9. Mandou o mesmo Senhor por outra parte prohibir ao Provincial da Companhia e mais Religiosos da sua filiação o ingresso no Paço, até segunda ordem de Sua Magestadle, ou até constar ao dito Senhor que os taes Religiosos vivem como são obrigados pelo seu santo instituto. E tem Sua Magestade ordenado por outra parte que para este justo e neccssarío fim se appliquem todos os meios que cabem — no seu real poder, e na protecção com que deve concorrei- para fazer observar como inviolaveís nos seus reinos e domínios os sagrados canones e as constituições apostolicas, que defendem aos Regulares, e muito mais aos Relígiosos da Companhia e aos Míssionarios, a íngerencia nos negocies seculares, o maneio do commercio, e ausura dos cambies mercantis, fundando-se tamlæcm nas concordatas com a Sé Apostolica, que se acham estabelecidas como lcys eonsnctudinarias deste reino.
10. Porém, como tudo isto se reduzia aí tcmporalidade e não cabia no poder de Sua Magestade 0 remedio das ruínas cspirituaes que deixo reicridas, necessitando estas do prompto e efficaz remedio, que só podia emanar do Summo Pontifice, Vigario de Christo Senhor nosso na terra; fazendo V. S.a presente ao Santissimo Padre, assim a fiel narração que deixo referida, como o conteúdo nesta carta, supplicará no mesmo tempo a Sua Santidade que se sirva de dar sobre esta importante materia tacs e tão eíiicazes providencias, que os abusos, excessos e transgressões, que se teem feito e continuam nas referidas provincias, cessem de huma vez, ficando ambas reduzidas á sua santa e primitiva observancia, e fazendo Sua Santidade renascer nellas os exemplos dignos de louvor e de imitação, que ha tantos annos se acham sepultados debaixo dos horrores de tão grandes, tão geracs e tão publicos escandalos.
11. Os que mais haviam terido os habitantes dos dominios de Sua Magestade na America, se espera que venham a cessar em grande parte pela execução da bulla pontificia de vinte de dezembro de mil setecentos quarenta e hum, inserta na pastoral do Bispo do Grão Pará, que vai incluida nesta carta debaixo do n.° II (agora n.° 1 desta Collecção), o das duas leys de Sua Magestade, que tambem vão debaixo do n.° III o IV (agora n.° II e III), as quacs o mesmo Senhor bem mandado publicar em todo o Brazil por modo effectivo; abolindo assim de huma vez o abuso de se não executarem naquelle continente decisões pontificias, ou resoluções regias, de que os mesmos Religiosos recebessem desprazer; e o que mais he, sem que houvesse quem se atrevesse a informar de hum tão prejudial e indecente abuso: e isto porque no mesmo continente prevaleceram sempre, para o sustentar, as ameaças que os taes Religiosos espalhavam industriosamente, para fazerem recear o poder da sua Religião e dos seus Padres, que andavam no Paço: os quaes verdadeiramente se descobrio nestes ultimos tempos, que com sinistros artificios arruinaram infelizmente diversos Governadores e Ministros zelosos do serviço de Deos e de Sua Magestade, sem outra culpa que não fosse a de haverem representado verdades, que aos mesmos Padres não serviam; e que, fazendo-se incriveis ao tempo que se representaram, vieram depois da guerra do Paraguay, e das desordens e sublevações do Maranhão, a demonstrar-se por factos manifestos, e taes como os que constam da sobredita Relação que leva o n.° 1 (agora n.° iv), e muitos outros, de que se podiam compor grossos volumes.
12. Sobre o que tudo ordena Sua Magestade que V. S.a pedindo, e obtendo do Santissimo Padre huma audiencia particular e secretissima, o informe plenamente de tudo o que deixo referido. E o mesmo Senhor espera que na paternal e apostolica providencia de Sua. Santidade não falte a menor parte do que fazem preciso tão notorias urgencias, para que huma Religião que tem feito tantos serviços á Igreja de Deos, não acabe nestes reinos e seus dominios pela corrupção dos costumes dos seus Religiosos, e pelo geral escandalo que clles teem causado com tão Successivos e estranhos absurdos.
13. Sendo os que se conteem na simples e fiel narração que acompanha esta carta, fundados em factos permanentes, que se acham notorios não só a tres exereitos, mas tambem a toda a America portugueza e hespanhola; e sendo derivados das mesmas fontes limpas, onde tiveram a origem primeira, sem mistura de tradiçäo suspeita, que deixe logar ăi menor duvida; tem Sua Magestade por certo que Sua Santidade não hesitará hum só momento sobre a necessidade, que os mesmos absurdos constituem de serem restituidos estes Religiosos aos exercicios do seu espiritual e santo instituto; e de serem apartados de toda a ingereneia nos negoeios politicos e nos interesses temporaes e mercantis; para que, livres da corrupção da cubiça do governo das Côrtes, da aequisição do fazendas, dos interesses do commercio, das usuras dos cambies, e dos mais bens da terra, sirvam a Deos, e aproveitem ao proximo, como verdadeiros imitadores das heroicas virtudes dos grandes e gloriosos Santo Ignacio, S. Francisco Xavier e S. Francisco de Borja, que, resplandecendo como brilhantes tochas, não só na sua Religião, mas em toda a Igreja Catholiea, nos deixaram nella tão illustres exemplos.
14. Principalmente quando emñm se considera com a madura e séria reßexão que e caso merece, que, tendo escandalisado tanto os cavalleiros Templarios, que pelas suas culpas foram extinctos com os severos castigos, que constam da historia; ainda assim se não lê nella que se atrevessem (como se teem atrevido os referidos Padres) a resistir positivamente a Papas e a Rîps; invalidando com prepotencia. humas vezes direeta, e outras índirecta, as b las pontifícias e leys regias; que ousassem ao mesmo tempo estabelecer republicas de vassallos, por elles rebellados aos seus Reys e senhores naturaes, dentro nos domínios dos mesmos Reys, cujos vassallos rebellavam, para com mão armada se opporem a tudo o que podia ser interesse dos mesmos Reys e povos por elles governados; e que emfim aspirassem a usurpação de reinos e imperios inteiros, como tambem tinham projectado estes Religiosos, e viriam a conseguir em breves annos, se não se houvesse descoberto o seu ambicioso e clandestino plano.
15. Pois que pelas colonias de Indíos rebeldes e feroees, que haviam estabelecido, e iam a toda a força estabelecendo, com quasi suceessivo progresso, desde o, Maranhão até o Uraguay; animando clandestinamente o grosso commercío e a fertil povoação daquellas numerosissimas colonias, pelos collegios, casas professas e residenciais, que conservam nas duas Cortes, e terras grandes dos legares maritimos de ambos os reinos e seus dominios, tinham quasi fechadas as duas Americas, portugueza e hespanhola, com hum cordão tão forte, que dentro do espaço de dez annos seria indissoluvel o nó, que com elle pretendiam apertar os referidos Religiosos; não havendo forças em toda a Europa, que fossem bastantes para os expugnar de tão vastos sertões, defendidos por homens no munero quasi infinitos, cuja lingua e costumes só os mesmos Religiosos podiam entender e praticar; accres ceudo o odio implacavel em que os educavam e endureciam irreconciliavelmente contra todos os brancos seculares.
-—Deos guarde a V. S.‘
Belem, 8 de outubro de mil setecentos cincoenta e sete.
—D. Luíz da Cunha.
—Sr. Francisco de Almada
de Mendonça.
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